Thursday, June 14, 2012

Agreste

Os dias pra mim possuem uma dualidade de sensações. Há os que amanheço leve, flutuando como um passaro, os planos a fluir na mente, confiante, os olhos se abrindo diante de um céu azul, o horizonte bem definido na mente, quase a levitar. Noutros, tudo é diferente, o sopro das reminiscências soa mais alto, a natureza parece estática. Sou contraditório dentro de uma coerência cotidiana. As noites, essas me recebem sob o agasalho da recatada intimidade. Delicio-me com os fins de tarde, quando a luz perde a imponência maior e o gradiente se torna escuro. Pode parecer estranho; mas é no escuro que meus olhos fisgam o imperceptível.

Acordo, imbuído do prazer estelar da noite que passou. E, no entanto, o quarto de dormir se deixa banhar pelos feixes do sol. A janela, devasso-a para respirar o oxigênio da renovação. Tenho sede de vida; vou vigiar o lusco-fusco com o intuito de entregar-me por inteiro à sabedoria dos despojados. Antes, todavia, há muito o que fazer: irei ao banco, pagarei contas, comprarei um novo livro, aborrecer-me-ei novamente com a monografia. O corpo se cansará na rede imbricada das relações formais e, depois, o cansaço da labuta me impelirá ao claustro — ao quarto de estudo. Apagarei a luz, deitarei no chão, então rapidamente me recuperarei dos inúteis afazeres.

Estou a salvo agora. Tomo um banho. Purifico-me. O ritual do sossego se inicia: no silêncio da noite e na placidez de Sabina, tocando no mp3. A essa hora não ouço os ruídos da fuleragem na casa ao lado, a velocidade dos carros na rodovia próxima, o burburinho de vozes em conversas desinteressantes, as discórdias do mundo... Escuto apenas a quietude da lua despontando à meia-noite.

Não penso em nada. Quero esvaziar-me das nódoas de um insípido dia. Sinto-me completo na liturgia da noite; é tempo de apreciá-la. Vou sair e tomar uma cerveja sozinho. Circunvolunção, e agora, e depois do agora, e o mesmo agora, e o presente dilapidando o instante, e Clarice Lispector a se perguntar pelo “é”... é isso ai só ela e, talvêz, Drummond me compreenda agora.

Fecho os olhos. Enxergo-me. Mergulho na ausência das coisas para depois absorvê-las com maior intensidade. Foi não foi, é necessário uma faxina interior, rasgar as emoções com a intenção de substituí-las. Qual o quê! Não serei capaz de anular minhas lembranças ou meus atos; por mais que me esforce, é vão todo o propósito. O inconsciente se encarrega de reter o que quero e o que não quero também. Um jogo de subjetivações para o qual me doo com um certo gozo. Preciso sair e beber um pouco.

O tempo firma a madrugada. A cerveja desce ao embalo de um vazio proposital. E não há como escapar da menor recordação: chego à conclusão de que o meu problema é tão somente esquecer... Impossível. A memória define minha identidade. O resumo do meu “eu” corresponde ao espaço da evocação. Assim, em um poço de oposições, vou edificando dias e noites. Sobrevivendo sem arranhões.

Amanhã, acordarei mais vivo e escreverei sob a ode das cores, até berrantes, quem sabe? Hoje estou negro. Ao modo de Drummond: “estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio”.

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